Futebol é coisa de quem quiser
- Updated: 29 de fevereiro de 2016
Sou completa e loucamente apaixonada por futebol desde que me entendo por gente. O “orgulho do papai”, que sonhava em ter uma menina, mas também queria alguém para acompanha-lo nos jogos de seu time. Aos cinco anos, eu trajava a camisa do meu time ao invés de um vestidinho rosa de lacinhos, mas me sentia igualmente linda. Ou até mais. Minha mãe não concordava muito, no começo relutou, mas o tempo tratou de conforma-la. Meu pai, satisfeito, comprava-me cada vez mais artigos – bandeiras, camisas, chapéus, ursos. Não importa onde estivéssemos, estádio ou sofá, ele fazia questão de cantar comigo o hino para que eu o tivesse sempre na ponta da língua, treinado, como uma professora ensina o “ABC” para seu aluno.
“Pai, por que não foi gol se a bola entrou?”, questionei pela primeira vez, quando realmente comecei a prestar atenção aos detalhes da partida. “Porque ele estava na posição errada, filha, os jogadores precisam estar alinhados assim, tá vendo?”. Aos sete anos eu aprendi o que era um impedimento. Esse homem, que me trouxe ao mundo e me criou, fez-me amar o futebol tanto quanto ele – até mais se duvidar. Ensinou-me nomes de jogadores e suas posições, o que cada um fazia e para que servia, esquemas táticos, regras e tudo que era necessário para eu compreender minha paixão, não só aprecia-la. Falou-me sobre competições e suas importâncias, para que eu pudesse entender o motivo de suas lágrimas ao ver nosso time ser campeão nacional em 2002.
Aos onze, eu podia discutir futebol com qualquer menino da minha rua com propriedade, sem hesitar. Podia, inclusive, deixa-los no chinelo com meus conhecimentos sobre tal esporte. Conhecimentos estes que meu pai me passou, assim como meu avô fez com ele. Preparou-me para torcer, amar, entender e viver de futebol. E eu, como boa filha que sou, não o decepcionei. Fiz uma das escolhas mais importantes da minha vida baseada nesse sentimento que ele me transmitiu: minha profissão.
Mas teve uma coisa para a qual meu pai esqueceu de me preparar: o preconceito, mais conhecido como machismo. Não por mal, longe disso. Ele só não sabia que nem todos pensavam – e agiam – como ele. Isso eu tive que descobrir e enfrentar sozinha, a cada “cala a boca, você é mulher, não sabe nada sobre futebol”. Ou então “só assiste jogo por causa de tal jogador”. Ou a cada vez que escutava a clássica pergunta: “você pelo menos sabe o que é um impedimento para opinar?”. Releva, é só uma brincadeira.
Certa vez, em uma “entrevista de emprego”, ao dizer que sou fissurada por futebol, fui questionada por um jornalista renomado/ fodão dos esportes/ apoiador das mulheres no jornalismo esportivo se eu sabia quantos jogadores havia em campo. O mesmo que eu vi, inúmeras vezes, falar em rede nacional que as mulheres precisam de mais espaço em tal área do jornalismo. Eu não tive reação. Ele riu e disse “releva, foi só uma brincadeira”. Respirei fundo, levantei e sai. Será mesmo?
Quando ganhei minha coluna em um site de notícias esportivas, ouvi e li diversas pessoas dizerem que “conseguiu só porque é bonita”, sendo que meu último texto havia batido o recorde de visualizações e derrubado o site. Pensei em retrucar, mas ai ouvi o famoso releva, foi só uma brincadeira. Pela milionésima vez. E eu, a essa altura do campeonato, já não conseguia “relevar” tão tranquilamente como antes.
Mas hoje, ao acordar, me deparei com uma situação que foi o ápice do ridículo. Informaram-me que uma foto minha com a camisa do meu time, publicada em uma rede social, foi parar em um grupo de torcedores do meu time. O primeiro comentário? “Como essas meninas adoram usar o time para aparecer”. Fiquei furiosa, magoada, decepcionada. Pensei em esculachar o indivíduo, mas então que eu parei para pensar e percebi que não era ele que estava errado, ou nenhum outro que me subestimou ao longo dos meus anos e anos de paixão e dedicação ao futebol. Era eu.
Eu relevei todas as “piadinhas” que faziam quando eu tentava dar minha opinião sobre um jogo. Fiquei quieta quando me mandaram lavar a louça ou estender a roupa ao invés de criticar determinado jogador. Sempre me omiti quando desdenhavam da minha capacidade de ser jornalista esportiva, só por ser mulher.
Se um homem chama um jogador de “lindo” durante a partida, é zoeiro, engraçadão. Se uma mulher faz isso, é safada, maria chuteira. Se um homem fica sem camisa durante o jogo, é normal, coisa boba. Se uma mulher vai de short, está ali só para chamar atenção. Se um homem brinca com um jogador em rede social e obtém resposta, é só mais um. Se uma mulher faz isso, vira notícia e é taxada como “putinha, vagabunda, quer garantir o futuro”. Se um homem apresenta um programa esportivo, os caras assistem porque ele “entende muito”. Se é uma apresentadorA, assistem porque “ela é gostosa”. Se um homem tira uma foto com a camisa do time e posta nas redes sociais, é demonstração de amor. Se é mulher, está aparecendo às custas do time.
Nós não podemos e nem devemos relevar isso, pois, cada vez que nos calamos diante de situações como essas, permitimos que esses pensamentos retrógrados se disseminem. Dizer que “futebol é coisa de homem” é tão ultrajante quanto afirmar que “é só um jogo”. Nunca foi e nunca será, para ambas as afirmações.
Jamais precisei que ninguém acreditasse no meu amor pelo meu time, e ainda não preciso. Quero apenas que respeitem, pois tal ato (desconhecido por muitos) é um dos princípios básicos da sociedade.
Não. Não é “só” uma brincadeira e eu não vou relevar, não mais. Pois cada vez que me calo, dou espaço para um “metido a machão” denegrir a minha imagem por aí, sem ao menos me conhecer. Sem saber do quanto eu estudo e me dedico, dia após dia, para conseguir meu lugarzinho, mesmo que pequeno, no mundo esportivo. Sem ter ideia de quantas vezes fiquei doente ou então mais de 24h sem dormir para descer a serra e acompanhar meu time. E no outro dia ainda tive que trabalhar e estudar, sem moleza.
Portanto, meu caro, reflita antes de julgar. Busque conhecer para falar, pois só temos propriedade para afirmar aquilo que realmente sabemos. Você pode rir de cada palavra escrita aqui e achar que é bobagem, frescura. Mas essas minhas palavras são apenas uma andorinha. Dizem que ela, sozinha, não faz verão. Mas, juntando com algumas outras, pode começar uma revoada. Esse texto é pra que, um dia, sua filha – caso você tenha e resolva transmitir tal paixão para ela – possa ser livre para amar, torcer, acompanhar, defender e principalmente DEMONSTRAR tal sentimento sem precisar ouvir de um babaca que ela utiliza isso para autopromoção.
Uma vez, ainda pequena, cheguei chorando do prézinho por ter declarado minha paixão por tal esporte e ser taxada por colegas de “maria macho”. “Eu não quero gostar de futebol, pai, é coisa de menino”. Então ele me colocou no colo, secou minhas lágrimas e disse: “Você não deve deixar de fazer ou amar algo por causa do que dizem, filha. Isso serve para qualquer campo da sua vida”.
“Então futebol também é pra mulher?”
“Futebol é coisa de homem e de mulher. Futebol é coisa de quem quiser”.
Janahina
8 de março de 2016 at 16:39
Que texto lindo!
Faço parte de uma campanha as Fechadas Com O Santa! A campanha foi criada em prol de chamar mais mulheres torcedoras e administradoras do futebol a frequentar os estádios.
“Porque mulher vive, entende e também fala de futebol”
https://www.facebook.com/fechadascomosanta/?fref=ts